sábado, 22 de março de 2014

 

Lembro-me de quando era criança e via,
como hoje não posso ver,
a manhã raiar sobre a cidade.
Ela não raiava para mim,
mas para a vida.
Porque então eu, (não sendo consciente)
eu era a vida.
E via a manhã e tinha alegria.
Hoje venho a manhã, tenho alegria,
e fico triste.
Eu vejo como via,
mas por trás dos olhos, vejo-me vendo,
E só com isso, se obscurece o sol,
O verde das árvores é velho,
E as flores murcham antes de aparecidas."

"Eu agi sempre,
Eu agi sempre para dentro.
Eu nunca toquei na vida.
Nunca soube como se amava…
Apenas soube como sonhava amar.
Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos,
É que às vezes eu queria julgar que as minhas mãos eram de princesa,
Gostava de ver a minha face refletida,
Porque podia sonhar que era a face de outra criatura."


"Eu tenho uma espécie de dever, de dever de sonhar
de sonhar sempre,
pois sendo mais do que uma espectadora de mim mesma,
Eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso,
E assim me construo a ouro e sedas,
em salas supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho entre
luzes brandas
e músicas invisíveis."


"Eu quero um colo, um berço
Um braço quente em torno ao meu pescoço
Uma voz que cante baixo
E pareça querer me fazer chorar.
Eu quero um calor no inverno
Um extravio morno da minha consciência
E depois sem som
Um sonho calmo
Um espaço enorme
Como a lua rodando entre as estrelas.

Extraído do Livro do "Desassossego" – Fernando Pessoa

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