quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Anjo meu

Gaivota, o mundo tem muitos anjos, andam por aí como lascas de luz a amparar as almas, sabem de nós o que Deus lhes disse, por isso sabem de nós, o que nós de nós não sabemos. Sabem quantos caminhos nos cruzam por dentro e a probabilidad...e de nos perdermos, por isso estão em cada encruzilhada a vigiar as nossas decisões, as nossas audácias, sabem para onde vamos, caminham connosco mesmo quando estamos perdidos, sobretudo quando estamos perdidos, e pegam-nos na mão quando caímos em desespero. Por isso acredita, há um anjo que te pega na mão e que sabe os teus caminhos - fecha os olhos, sente-o, escuta-o, há uma lasca de luz a amparar-te a alma. Quase nunca a vemos, é invisível, intangível, mas repara, por vezes pode estar dentro de um amigo, é que os anjos pedem a mão emprestada para nos acariciarem, para nos tocarem na carne, eles que não têm carne. São gestos humanos, mas afagos divinos que nos salvam. Queria ser a mão do teu anjo e salvar-te, mostrar-te o caminho! Gaivota, queria ser a mão do teu anjo, libertar-te dessa escuridão em que te deitas, desse sonho apagado em que te escondes.
João Morgado

Gosto das sombras porque gosto da luz - porque só os corpos iluminados têm sombra verdadeira, aquela sombra que é fiel ao corpo, que corre pelo chão e galga muros, que dança sem pisar.
João Morgado

A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

Agora eu sou claro, agora eu vôo, agora eu me vejo abaixo de mim mesmo, agora um Deus dança através de mim …Nietzche

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