domingo, 19 de janeiro de 2014

Música é vida interior, e quem tem vida interior jamais padecerá de solidão…Artur da Távola

Violino

 

 

 

 

AFINIDADE

AFINIDADE
A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,
delicado e penetrante dos sentimentos.
E o mais independente.
Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,
as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro
retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto
no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vida.
É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo para o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro.
Mas quando existe não precisa de códigos
verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento,
irradia durante e permanece depois que
as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar
a um não afim, sai simples e claro diante
de alguém com quem você tem afinidade.
Afinidade é ficar longe pensando parecido a
respeito dos mesmos fatos que impressionam comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavras.
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento...
Afinidade é sentir com. Nem sentir contra,
nem sentir para, nem sentir por.
Quanta gente ama loucamente,
mas sente contra o ser amado.
Quantos amam e sentem para o ser amado,
não para eles próprios.
Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar, ou, quando falar,
jamais explicar: apenas afirmar.
Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.
Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças.
É conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas,
quanto das impossibilidades vividas.
Afinidade é retomar a relação no ponto em que
parou sem lamentar o tempo de separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas oportunidades dadas (tiradas) pela vida,
para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser,
cada vez mais a expressão do outro sob a
forma ampliada do eu individual aprimorado.

Artur da Távola

Christian Schloe-2

Talvez seja tão simples, tolo e natural que você nunca tenha parado para pensar: aprenda a fazer bonito o seu amor. Ou fazer o seu amor ser ou ficar bonito. Aprenda, apenas, a tão difícil arte de amar bonito. Gostar é tão fácil que ninguém aceita aprender.
Tenho visto muito amor por aí, Amores mesmo, bravios, gigantescos, descomunais, profundos, sinceros, cheios de entrega, doação e dádiva,mas esbarram na dificuldade de se tornar bonito. Apenas isso: bonitos,belos ou embelezados, tratados com carinho, cuidado e atenção. Amores levados com arte e ternura de mãos jardineiras.
Aí esses amores que são verdadeiros, eternos e descomunais de repente se percebeu ameaçados apenas e tão somente porque não sabem ser bonitos: cobram; exigem; rotinizam; descuidam; reclamam; deixam de compreender;necessitam mais do que oferecem; precisam mais do que atendem; enchem-se de razões. Sim, de razões. Ter razão é o maior perigo no amor.
Quem tem razão sempre se sente no direito (e o tem) de reinvindicar, de exigir justiça, equidade, equiparação, sem atinar que o que está sem razão talvez passe por um momento de sua vida no qual não possa ter razão. Nem queira. Ter razão é um perigo: em geral enfeia o amor, pois é invocado com justiça mas na hora errada. Amar bonito é saber a hora de ter razão.
Ponha a mão na consciência. Você tem certeza que está fazendo o seu amor bonito?
De que está tirando do gesto, da ação, da reação, do olhar, da saudade, da alegria do encontro, da dor do desencontro, a maior beleza possível? Talvez não. Cheio ou cheia de razões, você espera do amor apenas aquilo que é exigido por suas partes necessitadas, quando talvez dele devesse pouco esperar, para valorizar melhor tudo de bom que de vez em quando ele pode trazer.
Quem espera mais do que isso sofre, e sofrendo deixa de amar bonito. Sofrendo, deixa de ser alegre, igual criança.E sem soltar a criança, nenhum amor é bonito.
Não tema o romantismo. Derrube as cercas da opinião alheia. Faça coroas de margaridas e enfeite a cabeça de quem você ama. Saia cantando e olhe alegre.
Recomendam-se: encabulamentos; ser pego em flagrante gostando; não se cansar de olhar, e olhar; não atrapalhar a convivência com teorizações; adiar sempre, se possível com beijos, “aquela conversa importante que precisamos ter”, arquivar se possível, as reclamações pela pouca atenção recebida. Para quem ama toda atenção é sempre pouca. Quem ama feio não sabe que pouca atenção pode ser toda atenção possível.Quem ama bonito não gasta o tempo dessa atenção cobrando a que deixou de ter.
Não teorize sobre o amor (deixe isso para nós, pobres escritores que vemos a vida como criança de nariz encostado na vitrine, cheia de brinquedos dos nossos sonhos) :não teorize sobre o amor, ame. Siga o destino dos sentimentos aqui e agora.
Não tenha mêdo exatamente de tudo o que você teme, como: a sinceridade;não dar certo; depois vir a sofrer (sofrerá de qualquer jeito); abrir o coração;contar a verdade do tamanho do amor que sente.
Jogue pro alto todas as jogadas, estratagemas, golpes, espertezas, atitudes sabidamente eficazes (não é sábio ser sabido): seja apenas você no auge de sua emoção e carência, exatamente aquele você que a vida impede de ser. Seja você cantando desafinado, mas todas as manhãs. Falando besteiras, mas criando sempre. Gaguejando flores. Sentindo o coração bater como no tempo
do Natal infantil. Revivendo os carinhos que instruiu em criança. Sem mêdo de dizer, eu quero, eu gosto, eu estou com vontade.
Talvez aí você consiga fazer o seu amor bonito, ou fazer bonito o seu amor,ou bonitar fazendo seu amor, ou amar fazendo o seu amor bonito(a ordem das frases não altera o produto), sempre que ele seja a mais verdadeira expressão de tudo o que você é e nunca, deixaram, conseguiu, soube, pôde, foi possível, ser.
Se o amor existe, seu conteúdo já é manifesto. Não se preocupe mais com ele e suas definições. Cuide agora da forma. Cuide da voz. Cuide da fala. Cuide do cuidado. Cuide do carinho. Cuide de você. Ame-se o suficiente para ser capaz de gostar do amor e só assim poder começar a tentar fazer o outro feliz.

Artur da Távola

Imagem de Christian Schloe

Coisas que a vida ensina depois dos 40

Christian Schloe-4

Coisas que a vida ensina depois dos 40
Amor não se implora, não se pede não se espera...
Amor se vive ou não.
Ciúmes é um sentimento inútil. Não torna ninguém fiel a você.
Animais são anjos disfarçados, mandados à terra por Deus para
mostrar ao homem o que é fidelidade.
Crianças aprendem com aquilo que você faz, não com o que você diz.
As pessoas que falam dos outros pra você, vão falar de você para os outros.
Perdoar e esquecer nos torna mais jovens.
Água é um santo remédio.
Deus inventou o choro para o homem não explodir.
Ausência de regras é uma regra que depende do bom senso.
Não existe comida ruim, existe comida mal temperada.
A criatividade caminha junto com a falta de grana.
Ser autêntico é a melhor e única forma de agradar.
Amigos de verdade nunca te abandonam.
O carinho é a melhor arma contra o ódio.
As diferenças tornam a vida mais bonita e colorida.
Há poesia em toda a criação divina.
Deus é o maior poeta de todos os tempos.
A música é a sobremesa da vida.
Acreditar, não faz de ninguém um tolo. Tolo é quem mente.
Filhos são presentes raros.
De tudo, o que fica é o seu nome e as lembranças a cerca de suas ações.
Obrigada, desculpa, por favor, são palavras mágicas, chaves que
abrem portas para uma vida melhor
O amor... Ah, o amor...
O amor quebra barreiras, une facções,
destrói preconceitos,
cura doenças...
Não há vida decente sem amor!
E é certo, quem ama, é muito amado.
E vive a vida mais alegremente...

Artur da Távola

Imagem de Christian Schloe

 

 

TER OU NÃO TER NAMORADO

Christian Schloe-6

Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo.
Namorado é a mais difícil das conquistas.
Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabiru, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão, é fácil.
Mas namorado, mesmo, é muito difícil. Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção não precisa ser parruda, decidida; ou bandoleira basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.
Quem não tem namorado é quem não tem amor é quem não sabe o gosto de namorar. Há quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento e dois amantes; mesmo assim pode não ter nenhum namorado.
Não tem namorado quem não sabe o gosto de chuva, cinema sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho.
Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar sorvete ou lagartixa e quem ama sem alegria.
Não tem namorado quem faz pacto de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.
Não tem namorado quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora em que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente; de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto ou descobre meia rasgada; de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.
Não tem namorado quem não gosta de dormir agarrado, de fazer cesta abraçado, fazer compra junto.
Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor.
Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado e sai com ela para parques, fliperamas, beira - d'água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.
Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos; quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar.
Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada, ou meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais.
Não tem namorado quem ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele.
Não tem namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz.
Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.
Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando duzentos quilos de grilos e medos, ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim.
Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria.
Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido.

Artur da Távola

Imagem de Christian Schloe

 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Nostalgia

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei ás romãs a cor do lume.

Eugénio de Andrade

 

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Quem Me Leva Os Meus Fantasmas

 

Glórias

Aquele era o tempo em que as mãos se fechavam
E nas noites brilhantes as palavras voavam
E eu via que o céu me nascia dos dedos
E a Ursa Maior eram ferros acessos
Marinheiros perdidos em portos distantes
Em bares escondidos em sonhos gigantes
E a cidade vazia da cor do asfalto
E alguém me pedia que cantasse mais alto
Quem me leva os meus fantasmas
Quem me salva desta espada
Quem me diz onde é a estrada
Quem me leva os meus fantasmas
Quem me leva os meus fantasmas
Quem me salva desta espada
E me diz onde é a estrada
Aquele era o tempo em que as sombras se abriam
Em que homens negavam o que outros erguiam
Eu bebia da vida em goles pequenos
Tropeçava no riso abraçava venenos
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala nem a falha no muro
E alguém me gritava com voz de profeta
Que o caminho se faz entre o alvo e a seta
De que serve ter o mapa se o fim está traçado
De que serve a terra à vista se o barco está parado
De que serve ter a chave se a porta está aberta
De que servem as palavras se a casa está deserta

Pedro Abrunhos

“E alguém me gritava com voz de profeta Que o caminho se faz entre o alvo e a seta”

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Juntei-me à voz verdadeira

Guitarra

Juntei-me à voz da guitarra
Por ser mais que verdadeira
Provei que eu própria era
Feita de sua madeira.
Viemos da mesma árvore
Talhadas do mesmo jeito
Guitarra tem as minhas formas
Eu tenho o seu próprio peito
Estão em mim as suas cordas
E até a mão de quem toca
É carne da minha carne
Falando na minha boca
Lídia Jorge

Noite laranja

É plural, o amor. Só uma visão antiga, antes de se saber que somos construídos por camadas sucessivas, podia imaginar o amor como um instrumento monolítico. Essa concepção priva as pessoas da alegria e amarra o amor à idade. De facto, não existe essa amarra se formos cultos do ponto de vista psicológico. O amor é um estado de alma que evolui até à morte.

Lídia Jorge

Modo de amar

 

Rosas de amor

prometo ser-te fiel se mo fores
também, não é certo que mo venhas a
ser. por isso, já to perdoo
prefiro partir assim para o resto da
vida. assim, com os olhos abertos à
frustração e talvez à vulnerabilidade
não prevejo nada em concreto, acredita,
não tenho olhos para outras moças,
só o digo assim por ser verdade
que tarde ou cedo havemos de encontrar
nos outros motivos de inusitado
interesse, e depois, pergunto,
vale mais que acordemos um amor
sobreposto ao futuro, um amor agora
que tenha conhecimento do futuro
e não esperar mais nada senão
a verdade. a decadente verdade que
chega já depois dos primeiros beijos

Valter Hugo Mãe

MARCUS STONE

Amor pra mim é ser capaz de permitir
que aquele que eu amo exista como tal,
como ele mesmo.
Isso é o mais pleno amor.
Dar a liberdade dele existir
ao meu lado
do jeito que ele é.

Adélia Prado

Imagem de MARCUS STONE

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Amar

Se toda vez que eu fechar os os olhos, ganhasse um beijo seu, fecharia os olhos eternamente.
De que vale o delírio dos olhos, se eles se fecham quando os lábios se tocam?
Em cada momento, um instante, Em cada instante, uma afirmação. Em cada afirmação, uma certeza de que jamais tiraria você do meu coração.
Eu queria ser invisível, para em teu quarto entrar e no silêncio da noite, teus lábios beijar.
Linda morena, que encanto é você! Alegre, felina, dengosa, você é mais, muito mais que uma rosa num belo jardim. Você é luz que traduz felicidade pra mim!
Mesmo que o ouro perca o seu valor, mesmo que o sol deixe de brilhar, por toda vida eu vou te amar.
Saudades de ti terei, saudades que vão me fazer chorar, saudades do teu beijo, saudades do teu olhar.

Diego José

Ninho de Alegria

Na mão – um pássaro que cala,
Teu nome – pedra de gelo na fala.
Um movimento de lábios, só.
Teu nome – quatro sons.
Uma bola em voo apanhada,
Um guizo na boca, de prata.
Um seixo, atirado num lago calmo,
soluça assim, como te aclamo.
Ao leve tropel do casco noturno
Alto teu nome responde.
E o gatilho a estalar soturno
Lembra-o, em nossa fonte.
Teu nome – ah, não consigo!–
Teu nome – um beijo no ouvido.
No gelo terno de pálpebras rígidas,
Da neve é o beijo no mundo.
É um gole de fonte, azul e frígido.
Em teu nome – o sono é profundo.

Marina Tsvetáieva

Memórias

Dedução
Não acabarão nunca com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo
firme,
fiel
e verdadeiramente.

Vladimir Maiakóvski

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

 

Paixão Ardente-1

O coração tem domicílio no peito.
Comigo a anatomia ficou louca.
Sou todo coração.

Vladimir Maiakóvski

A FLAUTA-VÉRTEBRA

Espaço

A todas vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e
[ celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.

Vladimir Maiakóvski

domingo, 5 de janeiro de 2014

PODE NEM SEMPRE SER ASSIM

 

Trovão
pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou nessas
palavras sublimes e estremecidas que, dizendo demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;
se assim for, eu digo se assim for –
tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo, Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas.
Edward Estlin Cummings

"Despedida"

Floriada

Olha-me,
É silêncio de amor, que o tempo guarda e sente
Ouve-me, quando olho para ti,...
Na minha voz vive o vento, revoltado com a despedida, sou chão sem terra, seca desta utopia, anseio o toque da verdade, sim, da tua verdade escondida
Sente-me,
Quando a boca é um sorriso, a alma cala o interior que me esconde e morta por dentro, continuo viva, sonho, insisto em sonhar, mas a realidade são caminhos separados, esgotados de esperar
Não me abraces, que me perco num triste abandono, não me beijes, o corpo adormecido, está hoje congelado pela frieza da distância sem sentido, chora o nosso outono
(sem quimeras nem ternura, grita o teu nome)
Trago em mim, o coração desfeito
E nada, nada, nada, é caricia, sol, alegria no meu peito
Hás-de pensar em mim num breve dia
(mas tão longe amor, estarei dessa magia)
E serei sombra do passado, dor do teu presente
(saudade lado a lado)
Sim...é mesmo um adeus e rezo, bebo a esperança com coragem

Paula OZ

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A noite abre meus olhos

Caminhei


Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado
Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes
A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta
o amor é uma noite a que se chega só.

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Nascemos, nascemos, nascemos

Antes

Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.
Para quem quiser ver a vida está cheia de nascimentos.
Nascemos muitas vezes ao longo da infância
quando os olhos se abrem em espanto e alegria.
Nascemos nas viagens sem mapa que a juventude arrisca.
Nascemos na sementeira da vida adulta,
entre invernos e primaveras maturando
a misteriosa transformação que coloca na haste a flor
e dentro da flor o perfume do fruto.
Nascemos muitas vezes naquela idade
onde os trabalhos não cessam, mas reconciliam-se
com laços interiores e caminhos adiados.
Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.
Nascemos quando nos descobrimos amados e capazes de amar.
Nascemos no entusiasmo do riso e na noite de algumas lágrimas.
Nascemos na prece e no dom.
Nascemos no perdão e no confronto.
Nascemos em silêncio ou iluminados por uma palavra.
Nascemos na tarefa e na partilha.
Nascemos nos gestos ou para lá dos gestos.
Nascemos dentro de nós e no coração de Deus.

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

História

A presença mais pura
Nada do mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores...
«a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?»
A altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um 'não esquecer' fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome
Ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
«a que distância deixaste
o coração?»


JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Distante

 

 

 

 

 

 

Jardim (2)