quarta-feira, 28 de maio de 2014

Gruta

Eis-nos dissolvidos pela memoria.
Olhamos a paisagem donde surge a neblina em movimento.
Somos fumegantes perfumes,simples acontecimentos em silêncios impulsivos.
Cerra-se os olhos e deixamos passar o vento nesse gesto misterioso,
Na verdade somos terra de ninguém em indecisos caminhos que nos vencem.
abdul kaly

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Riscas

eu não sei se o silencio será o grito mais alto,mas é uma emoção pertinente sentir o ruído do silencio na alma como forma de grito.
de uma coisa eu tenho certeza a nossa alma fica desmembrada quando o nosso corpo nos trai.
abdul kaly

Primavera Azul

Eu refinei a minha alma com personalidade, para que um dia veja o sol e o céu com outros olhos,para que a mágoa não seja um labirinto de palavras vazio,para que vejas que não há sorrisos mais deslumbrantes que o sorriso dos olhos,é como abrir a janela do mundo.
abdul kaly

77

O meu olhar turva-se como nevoeiro nas cordilheiras.
salvaste a minha alma...
mas entende que o meu corpo está partido e tens
que partir e deixar-me aqui.
é verdade que desvalorizamos os motivos que por
vezes nos
fazem aquietar o espírito,
mesmo assim nada sabemos de nós próprios.
somos magos artesãos como a primavera, mas
morremos como as flores.
é verdade que doí morder a saudade mas mais doí
saber que o vento levará o calor do teu abraço.
abdul kaly

terça-feira, 20 de maio de 2014

22

,Primeiro está a solidão.
Nas entranhas e no centro da alma:
que é a essência, o dado básico, a única certeza:
que só a tua respiração te acompanha,
que sempre bailarás com a tua sombra,
que essa treva és tu.
Teu coração, esse fruto perplexo, não tem que azedar-se com a tua sina
solitária; ...
Deixa-o esperar sem esperança
de que o amor é uma dádiva que um dia chegará só por si.
Mas primeiro está a solidão,
e tu estás só,
estás só com o teu pecado original - contigo próprio - .
Acaso uma noite, às nove,
aparece o amor e tudo estoira, e algo se ilumina dentro de ti,
e tornas-te outro, menos amargo, mais feliz:
mas não te esqueças, especialmente então,
quando o amor chega e te calcina,
que primeiro e sempre está a tua solidão,
e logo nada
e depois, se houver de chegar, está o amor.
Darío Jamarillo Agudelo, in "Um País que Sonha. Cem anos de poesia colombiana (1865-1965)", Assírio & Alvim, 2012 (trad. Nuno Júdice)

Pensem quais podem ser as razões básicas para o desespero. Cada um de vocês terá as suas. Proponho-vos as minhas: a volubilidade do amor, a fragilidade do nosso corpo, a opressiva mesquinhez que domina a vida social, a trágica solidão em que no fundo todos vivemos, os reveses da amizade, a monotonia e a insensibilidade que andam associadas ao costume de viver.

Enrique Vila-Matas

«Custa muito (…) elevarmo-nos acima de nós próprios e, desumanamente, observarmo-nos, não na nossa qualidade de habitantes deste planeta, enterrados até ao pescoço na sociedade dos homens e condicionados por ela, mas como nos observariam os habitantes de um planeta remoto, com o mesmo distanciamento, com a mesma impassível desumanidade. Se conseguíssemos alcançar tal desdobramento, o que é que ver...íamos? Veríamos que há milhares de homens, há milénios, que vêm sulcando um caminho tão profundo que ninguém consegue sair dele, de tal modo que todos nós, embora nos julguemos livres, não o somos mais do que uma formiga que caminha com outras formigas dentro de uma mesma fila. Aqui, na terra, tudo é idealizado: idealizamos a nossa servidão ao grupo, ao indestrutível caminho, inventando determinadas palavras, venerando-as. Chamamos “bem” ao caminho que, precisamente por um hábito ancestral, estamos habituados a percorrer e “mal” à terra livre, inexplorada, que se estende à sua volta. O que é a moral senão a idealização da nossa férrea dependência do “caminho”?»
Carlo Coccioli, “Fabrizio Lupo”, Cotovia, 1991

Cidade luz

Tenho saudades de uma terra
onde nunca estive,
onde todas as árvores e flores
me conhecem,
à qual nunca vou,
mas onde as nuvens
se recordam exactamente
de mim,
um estrangeiro que
não possui casa onde chorar. ...
Viajo
até uma ilha sem porto,
atiro as chaves ao mar
antes de partir.
Não chego a lugar nenhum.
A minha vela é como uma teia de aranha ao vento,
mas não se rompe.
E além do horizonte,
onde grandes aves
no final do seu voo
secam as asas ao sol,
há um continente
onde me devem aceitar
sem passaporte,
sob o aval das nuvens."
Hilde Domin (tradução de Sofia Moura a partir do castelhano e do inglês)

 

Liberte-se

Depois de termos amado (e até às vezes a sério)
e de termos sido amados (inclusive de verdade)
Depois de termos escrito, mas sem nomear nunca
o que era necessário. Depois das cidades,
dos corpos, dos objectos, depois de termos deixado
para trás o memorável com que coincidimos,
depois de defraudarmos, depois de nos defraudarmos,
depois de percorrermos a viela do tempo,
depois da impiedade, depois ...do fogo,
acabamos por chegar ao fim da noite.
E aí a chuva cai escura sobre o mundo,
e já não há ocasião para dizermos depois.
Carlos Marzal (trad. de Joaquim Manuel Magalhães)

 

Mandala Radiante

O sol dos sonhos derreteu-lhe as asas
E caiu lá do céu onde voava
Ao rés-do-chão da vida.
A um mar sem ondas onde navegava
A paz rasteira nunca desmentida...
...
Mas ainda dorida
No seio sedativo da planura,
A alma já lhe pede, impenitente,
A graça urgente
De uma nova aventura."
M. Torga

Arvoredo

A tarde ainda tem alguma coisa para nos dar.
Contudo, o sol não pára, prepara
o lusco-fusco a partir do azul do céu.
Pássaros agitam-se por entre as folhas
das árvores. A brisa, também ela, recrudesce
na ramagem. O tempo faz aquilo
para que melhor foi treinado,
não espera por ninguém, aproxima-se depressa
da hora dos morcegos
.

Vítor Nogueira

domingo, 18 de maio de 2014

“Eu não conheço rajada de vento Mais poderosa que a minha paixão E quando o amor relampeia aqui dentro Vira um corisco esse meu coração”

Sou Filha Das Ervas

Trago o alecrim, trago Saramago
Cheira-me a jasmim,
O resto que trago
Trago umas mezinhas
Para o coração
Feitas das ervinhas
Que apanhei no chão!

Sou filha das ervas
Nelas me criei
Comendo-as azedas
Todas que encontrei
Atrás das formigas
Horas que passei
Sou filha das ervas
E pouco mais sei!

Rosa desfolhada
Quem te desfolhou?
Foi a madrugada
Que por mim passou
Foi a madrugada
Que passou vaidosa
Deixou desfolhada
A bonita rosa!

Sou filha das ervas
Nelas me criei
Comendo-as azedas
Todas que encontrei
Atrás das formigas
Horas que passei
Sou filha das ervas
E pouco mais sei!

Ramos de salgueiro
Terra abrindo em flor
Amor verdadeiro
É o meu amor
Papoila que grita
No trigo doirado
Menina bonita
Rainha do prado!

Sou filha das ervas
Nelas me criei
Comendo-as azedas
Todas que encontrei
Atrás das formigas
Horas que passei
Sou filha das ervas
E pouco mais sei!

Carlos Gonçalves / Amália Rodrigues

“Sou filha das ervas Nelas me criei”

terça-feira, 13 de maio de 2014

Amor de Flor

Depois de termos amado (e até às vezes a sério)
e de termos sido amados (inclusive de verdade)
Depois de termos escrito, mas sem nomear nunca
o que era necessário. Depois das cidades,
dos corpos, dos objectos, depois de termos deixado
para trás o memorável com que coincidimos,
depois de defraudarmos, depois de nos defraudarmos,
depois de percorrermos a viela do tempo,
depois da impiedade, depois ...do fogo,
acabamos por chegar ao fim da noite.
E aí a chuva cai escura sobre o mundo,
e já não há ocasião para dizermos depois."
Carlos Marzal